segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Deus e eu



Eu só sei pensar alto. Viver não. A altura da vida não corresponde à altura do pensamento. Pensei muito mais do que vivi. Quis muito mais do que realizei. Vivi baixo, pensei alto. Não importa. O que quero é este amanhecer cheio de graciosidade; quero este ipê florido em tempos de secura.
Quero a vida generosa neste espaço onde quase nada me desperta o sorriso.
Experimento o silêncio de Deus e só assim me convenço de sua existência. Acho estranha a crença de que Deus abriu mares, derrubou muralhas, fez chover pães, naufragou exércitos.
Gosto de Deus é por causa de sua fraqueza. Eu o reverencio é por causa de sua estranha forma de carecer, de necessitar, de ficar pequeno.
Andei pelos pastos e Ele andou comigo. Na hora da sede, a água dividida. Na hora do almoço, a marmita repartida. Mulher e Deus, sentados na mesma planície, sob as agruras do mesmo cansaço. Na hora da felicidade, sobretudo quando não a esperávamos, os sorrisos se encontravam surpresos. As razões eram poucas, mas tudo era motivo de riso, de prolongado êxtase, que parecia perdurar mais que o tempo marcado no relógio.
Deus é bonito quando visto de perto. A glória ofusca a revelação. O trono, a exaltação, o brilho das representações velam sua verdadeira beleza. Ele é bonito no avesso de sua divindade, quando entra na cozinha da minha casa, aconchega-se aos pés do meu fogão à lenha e reclama das dores nas pernas.
Os olhos na direção das chamas, os dedos coçando a barda por fazer, o cansaço no fim do dia, e expressão preocupada de quem carrega o peso de guiar os destinos do mundo, tudo anunciando o cansaço de sua carne humana e os desatinos que nascem de sua solidão de amigos. Nele há uma orfandade incurável, uma tristeza bonita de quem sabe os limites que possui. O limite maior, o de não ter um colo em que possa deitar a cabeça. Um olhar de menino que sofre de saudade do pai, da mãe, dos irmãos. Um olhar que reconhece que não tem ninguém a quem dirigir um pedido de socorro, já que não tem ninguém acima de sua condição! Ninguém é Deus de Deus. É por isso que ele se recolhe na solidão de minha cozinha.
Lá, no silêncio de minhas panelas e labaredas, lá onde a vida é mulher e ele pode descansar do duro encargo de pôr ordem nas realidades criadas. Ali ele não sofre exigências, nem recebe elogios desconcertantes. Ele já me confidenciou que os elogios o deixam muito envergonhado. Disse também que não gosta de flores de plástico e fitas de cetim estendidas no altar. Ri, porque acha que fica feio.
Esse é o meu jeito de adorá-lo. Não há alarde na minha crença. Eu creio é na sua fraqueza, fruto de sua capacidade de amar. Ele bem sabe o peso de ser humano. Amar é o mesmo que ser fraco. Eu penso assim, mas ele não.
Adoro-o assim, retirando-lhe o manto de glória e oferecendo-lhe chinelos para os pés. Oferecendo-lhe lençóis limpos, na cama de sua preferência. Essa adoração o agrada.
Deixá-lo a sós, sem rezas, sem pedidos, sem clamores e sem elogios. Deixá-lo descansar de ser o que é. Cuidar dele e, ainda que por um instante. Ser a mãe que lhe é ausente.
Outro dia chegou sem que eu o esperasse. Pediu se podia dormir na minha casa. Prontamente disse que sim. – Algum problema?- perguntei - Não. Só quis me refugiar um pouco num lugar em que não procurassem por mim. Sorriu e entrou. Eu concordei.
Preparei-lhe um chá, falamos de amenidades, coisas sem importância. Depois deitou e dormiu, enquanto eu ainda ajeitava o lençol para lhe cobrir os pés. No outro dia, acordei e ele já não estava mais. Deixou-me um pequeno bilhete escrito: “Obrigado pela dormida. Obrigado...”

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